O que procura?

Encontre serviços e informações

Nasce um símbolo

A história de amor da Ana Cristina pela enfermagem emocionou milhões de pessoas. Após travar uma batalha incurável contra o câncer, ela nos deixou na última sexta-feira e fez nascer algo maior

Ana Cristina Gualberto da Silva faleceu sexta-feira (7), aos 45 anos de idade, na ala de cuidados paliativos do Hospital de Apoio de Brasília (HAB), onde havia dado entrada no dia 14 de janeiro, em estado grave de saúde e sem chance de cura. Mesmo consciente de sua própria finitude, a paciente ainda tinha um sonho a realizar: ser enfermeira. Ao não desistir, Ana contou com uma rede de pessoas que se sensibilizou e trabalhou para realizar seu último desejo. Dia 23 de janeiro, em uma cerimônia oficial nas dependências do hospital, ela recebeu o diploma da faculdade e o registro profissional honorário concedido pelo conselho, como forma de reconhecimento ao seu amor pela profissão. Sua história de superação marcou o país, mostrou a importância dos cuidados paliativos e revelou o sentido maior da colaboração entre as pessoas.

Ana Cristina era técnica de enfermagem e estava cursando o 8º semestre do curso superior, quando teve de interromper os estudos para enfrentar um câncer no pâncreas. Infelizmente, a paciente não respondeu ao tratamento e, durante um atendimento psicológico para aliviar o sofrimento, revelou o desejo de se formar. “O vinculo com a paciente Ana Cristina se iniciou logo com a sua chegada. Ainda no corredor do hospital, ela demonstrava e dizia sentir muita dor. A enfermeira Ana Catarine falou com a médica plantonista, que prescreveu morfina injetável. Após aplicação, eu fui à paciente, que estava gemendo, olhei nos olhos dela e ofereci um copo de água. Esse foi o primeiro contato que tivemos com ela”, lembra a psicóloga Giselle de Fátima Silva.

Dentre as tarefas da psicologia em cuidados paliativos, a mais importante é a escuta, a consulta psicológica beira-leito. “Durante a abordagem psicológica, ela trouxe para mim que o sonho da vida dela não seria realizado, pois teve que trancar a faculdade e amava a profissão. Ela tinha o profundo desejo de se tornar enfermeira”, conta a psicóloga. “Em alguns momentos, ela chegou a questionar a médica e a mim se deveria renovar a matrícula. A gente, com muita delicadeza, respondia que, ‘no momento, não, pois ela estava internada com sintomas que precisavam ser tratados'”, ponderava a psicóloga.

Depois dessa conversa com a paciente, naturalmente tocada pela situação, Giselle encontrou a enfermeira Ana Catarine no corredor e perguntou ‘poxa, será que o conselho não pode fazer nada por essa paciente? É o sonho dela’. Ana Catarine pegou o telefone, ligou para o Coren-DF e contou a história. “Ficamos muito sensibilizados e prontamente decidimos ajudar a realizar esse último desejo. Criamos um título honorário e concedemos à Ana Cristina, como forma de reconhecer seu amor e sua obstinação pela profissão. Foi um dos episódios mais marcantes da minha vida, nunca vou esquecer”, lembra o presidente do Coren-DF, Dr. Marcos Wesley.

Tudo isso só foi possível por causa da iniciativa da enfermeira Ana Catarine, profissional que atua na ala de cuidados paliativos do HAB. “Para mim, ficou marcado o trabalho em equipe, o esforço coletivo que as pessoas fizeram para que tudo fosse possível, sem esperar nada em troca. O conselho tornar essa realidade possível, com o empenho de todos os funcionários envolvidos. Os residentes que a ajudaram ela se arrumar, a equipe que ajudou a monitorizar a paciente. As pessoas se mobilizaram e conseguiram beca, maquiagem, cabeleireira. Tudo. Foi emocionante”, conta.

“Foi legal porque a Ana Cristina, com essa coisa de se arrumar, dizia ‘ah, não, gente, eu quero uma coisa simples, tá bom? Só uma coisa simples, tá ok?’. Mas, quando a maquiadora chegou e começou a arrumá-la, ela se empolgou, começou a dizer ‘nossa, estou me sentindo uma rainha. Eu sou uma rainha’. Não queria tirar a maquiagem depois da cerimônia. A gente viu o quanto isso fez diferença na autoestima dela. Foram muitas pessoas envolvidas para isso acontecer. Eu fui testemunha desse acontecimento lindo”, conta a enfermeira Ana Catarine.

Na área da saúde, a equipe faz um esforço emergente para cuidar dos pacientes. Faz parte da essência de cuidar. Mas, nos cuidados paliativos, ajudar o paciente a realizar desejos e solucionar conflitos é ainda mais urgente. “Algo que me deixou muito emocionada e me fez refletir foi o sonho dela ser sobre enfermagem. Eu sempre fui apaixonada pela enfermagem. Eu amo ser enfermeira. Mas é claro que, com o tempo, o excesso de críticas e a falta de valorização vai causando um desânimo na gente. Essa experiência com ela me fez lembrar por que eu tenho a melhor profissão do mundo. Me fez renovar o meu juramento. Renovou a minha motivação, a minha esperança e o meu desejo de cuidar dos pacientes. A história dela me fez lembrar que vale a pena, mesmo quando ninguém está vendo, quando é só a gente e o paciente. Vale a pena. É uma certeza que eu tenho”, assegura Ana Catarine.

Segundo a psicóloga Giselle de Fátima Silva, os profissionais levam o trabalho em equipe muito a sério no HAB. “Uma das coisas que acontece com frequência é acolher o paciente em sua integralidade. É habitual a realização de sonhos e a resolução de conflitos. Dentro das nossas possibilidades, procuramos realmente aliviar o sofrimento das pessoas. Quando admitimos pacientes aqui, infelizmente, é por que não respondem mais a tratamento modificador da doença. Não existe mais o foco para curar a doença. Mas existem outras dores a se aliviar. É a dor psicológica, a dor social, a dor espiritual. Existem situações inacabadas que envolvem todos os níveis de dor. Era o caso dela. A conclusão do curso dava sentido à existência dela, que já tinha consciência da sua própria finitude”, explica.

No dia da morte, Ana Cristina estava acompanhada das duas melhores amigas, Renata Cunha e Márcia Maria, que a acompanharam durante todo o processo de tratamento. “No dia da despedida, estávamos lá, uma de cada lado, do jeito que ela gostava. Ana estava serena, tentou abrir os olhos, mas não conseguiu. Mas ela sentiu que estava protegida, não estava abandonada, estava lá as duas pessoas que ela confiava e sabia que não a abandonariam por nada. Nossa luta durou 6 meses, muitas alegrias e tristezas, mas a nossa fé nos sustentava. Acabou o sofrimento. Nossa missão foi cumprida”, conta a inseparável amiga Renata Cunha.

A enfermagem trabalha com limites o tempo todo. Com o limite dos recursos, da técnica e da própria existência. Mas, quando nem o limite da vida é empecilho para realizar um sonho, significa que existe um sentido maior na colaboração entre as pessoas. A escuta sensível ao sofrimento humano cura.

Ana Cristina se foi, mas deixou um legado que jamais se perderá. Que ela descanse em paz.