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Governo, MP e Judiciário ignoram risco no deficit de enfermagem

Representantes do Conselho Regional de Enfermagem do Distrito Federal (Coren-DF) foram ao Hospital de Base do Distrito Federal (HBDF) nesta terça-feira, 12 de setembro, pela manhã e à noite, para apurar o relato de que, na madrugada da última segunda-feira, 11 de setembro, havia apenas dois técnicos de enfermagem para prestar assistência a cerca de 50 pacientes em uma ala (posto 2) do pronto-socorro. De manhã, o conselheiro Francisco Ferreira Filho e o procurador-geral do conselho, Jonathan Rodrigues, estiveram no local e conversaram com a coordenadora da emergência, enfermeira Jadelma Machado. À noite, três conselheiros e o procurador-geral voltaram ao pronto-socorro para ouvir relatos dos profissionais de enfermagem.

De acordo com Jadelma, o deficit é geral e há grande dificuldade em fechar as escalas de trabalho. Na ocasião da madrugada de 10 para 11 de setembro, a coordenadora mostrou na escala do plantão que um servidor havia sido exonerado, dois servidores apresentaram atestado médico e outros dois não compareceram ao serviço e, até a manhã desta terça (12/9), não haviam justificado a falta. A gestora conseguiu realocar dois profissionais por meio de horas extras.

Ela aponta também que, no caso dos atestados médicos, o problema da falta de pessoal se agrava quando o servidor comunica a licença em cima da hora. “Às vezes, são 18h45 e recebemos o aviso de que o servidor entrou de licença. Não dá tempo para chamar outra pessoa para cobrir essa falta”, relata. Outro problema, segundo Jadelma, é a recente decisão do Tribunal de Contas do Distrito Federal de determinar a suspensão da jornada de 18 horas na Secretaria de Saúde, outro fator que prejudica o preenchimento das escalas no Hospital de Base, pois é comum que servidores que não residem no Distrito Federal realizem essa carga horária.

“Como vamos exigir assistência de qualidade ao paciente a um profissional que precisa atender mais de 20 pessoas em um pronto-socorro, se o juiz considera que o conselho não pode exigir a contratação de mais profissionais?”, indigna-se o presidente do Coren-DF, Gilney Guerra. Na imagem acima, dezenas de pacientes no corredor de acesso ao pronto-socorro do Hospital de Base do DF

Noites exaustivas

Na noite de 12 de setembro, os conselheiros Adriano Araújo, Cleidson de Sá Alves e Ricardo Cristiano da Silva e o procurador-geral, Jonathan Rodrigues, percorreram os postos de enfermagem do pronto-socorro para avaliar a situação do exercício profissional. Eles foram auxiliados pela única enfermeira que trabalhava em todo o pronto-socorro. No posto 2, que atende especialidades como ortopedia, urologia e vascular, havia cerca de 50 pacientes e quatro técnicos de enfermagem. Desses, apenas uma profissional estava escalada. As outras prestavam apoio ao serviço por meio de horas extras.

Conselheiros ouvem relatos dos profissionais de enfermagem e prestam esclarecimentos sobre as ações desenvolvidas pelo Coren-DF

No posto 1 (neurocirurgia e bucomaxilofacial), em um espaço que comporta apenas 16 leitos, havia 30 pacientes internados e três técnicos de enfermagem na assistência. Durante a visita, uma enfermeira do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu-DF) comunicou à enfermeira do pronto-socorro que precisava levar mais um paciente à unidade, mas foi avisada pelo profissionais do local que não havia maca nem lençol disponíveis.

Um paciente de 57 anos que sofreu acidente de moto aguarda há 20 dias por uma cirurgia no ombro. Ele abordou os conselheiros para desabafar sobre a penúria por que tem passado. Reclama que não recebe visita de médicos, sente fortes dores e dificuldade para respirar, além de ter a sensação de que “o peito vai explodir” quando tosse ou espirra. O paciente está internado no corredor da entrada do pronto-socorro e não sabe quando será operado – nem o motivo de não ter sido operado até agora. Nas macas próximas ao longo do corredor, a reclamação sobre falta de informações e de atendimento médico se repete.

No posto 6 (clínica médica, oncologia, oftalmologia e neurologia), uma técnica de enfermagem que trabalha há três anos no HBDF relata problemas na sala de materiais esterilizados. “No mesmo espaço, lidamos com materiais sujos e limpos. Deveria haver duas salas. Além disso, a sala não é trancada e os pacientes entram aqui. Tudo isso é risco, pode comprometer o estado dos equipamentos”, avisa. Na sala de medicação, uma profissional queixava-se de não conseguir se alimentar nem ir ao banheiro por falta de um servidor para rendê-la. “Você veste a camisa… eu faço pelo paciente, ele precisa, mas aqui não tem reconhecimento”, desabafou a técnica de enfermagem, servidora do Base há 15 anos.

 

“Humanamente impossível prestar assistência”

De acordo com a gerente de fiscalização do Coren-DF, Daniela Bonacasata, a situação no pronto-socorro está insustentável. O conselho obteve documentos e escalas que mostram que a unidade conta com 106 leitos, mas é comum permanecer quase o dobro de pacientes, apesar de não mudar o número de profissionais de enfermagem. “Há plantões noturnos com apenas três enfermeiros. É humanamente impossível prestar assistência de qualidade. Aliás, nem é possível avaliar todos os pacientes com esse deficit”, aponta.

As inspeções feitas por enfermeiras fiscais do Coren-DF mostram que, em maio de 2017, havia deficit aproximado de 63 enfermeiros e 58 técnicos de enfermagem no pronto-socorro, conforme cálculos baseados na Resolução Cofen 293/2004, norma sobre dimensionamento de pessoal vigente à época e atualmente substituída pela Resolução 543/2017. Já segundo o Manual de Parâmetros para Dimensionamento da Força de Trabalho da Secretaria de Saúde do DF, faltam cerca de 15 enfermeiros (600 horas) e 32 técnicos de enfermagem (1300 horas), tomando por base a carga horária semanal de 40 horas.

O Coren-DF apurou ainda que, devido a restrições médicas ou laborais, há mais de 1,4 mil horas de técnico de enfermagem bloqueadas no pronto-socorro. “Essas horas significam 35 servidores de 40 horas fora da assistência ao paciente”, mensura a gerente. Quando há restrição, o funcionário é deslocado para atividades-meio, como apoio administrativo e sala de material.

No corredor de entrada do pronto-socorro do Hospital de Base, já é possível constatar a superlotação.

Cinco anos de descaso

O pronto-socorro do Hospital de Base é alvo de processo administrativo no Coren-DF desde 2012. Deficit de profissionais de enfermagem, falta de insumos, equipamentos sem manutenção e problemas na assistência e nos registros de enfermagem são os problemas mais comuns encontrados ao longo das mais de 600 páginas e quatro volumes que compõem o processo. Mesmo com a sequência de notificações administrativas e extrajudiciais por parte do conselho, a Secretaria de Saúde pouco fez para melhorar a situação de trabalho e assistência no HBDF.

Além disso, em outubro de 2016, vários setores do Hospital de Base foram fiscalizados como parte de uma força-tarefa empreendida junto com outros conselhos de fiscalização profissional e o Ministério Público do DF. O pronto-socorro foi uma das áreas inspecionadas, onde foram constatados os mesmos problemas de falta de pessoal, inclusive ausência de enfermeiro para supervisão das ações de enfermagem.

“Não há índice de segurança técnica para a cobertura de ausências ao plantão. Quando acontece, os enfermeiros supervisores precisam recorrer a horas extras a fim de garantir a cobertura. Todavia, alegam que os profissionais de enfermagem vêm apresentando recusa alegando o atraso no pagamento das horas extraordinárias”, consta no termo encaminhado ao Ministério Público do DF. “O uso frequente de horas extraordinárias causa dispêndio aos cofres públicos e não sanam por completo o deficit de pessoal, além de ser um método de difícil controle para o Estado e corrobora com a sobrecarga de trabalho”, destacaram as fiscais.

Na ocasião da apresentação do relatório final da fiscalização conjunta ao procurador-geral de Justiça do DF, Leonardo Bessa, o promotor de Justiça de Defesa da Saúde Jairo Bisol declarou que o documento de quase mil páginas seria usado “para firmar termos de ajustamento de conduta (TACs) com o governo para garantir investimentos e superar esse caos na saúde. Se o diálogo não se mostrar viável, seguiremos o caminho da judicialização”. No entanto, não houve desdobramento até agora.

Em qualquer área do pronto-socorro do Hospital de Base, há mais pacientes internados do que o número de leitos comporta

Derrota judicial

Para o procurador-geral do Coren-DF, uma das dificuldades em exigir o cumprimento do dimensionamento de pessoal de enfermagem estabelecido pelo Conselho Federal de Enfermagem é o descrédito da Justiça. “Nós já ajuizamos uma ação contra um hospital particular devido ao número insuficiente de profissionais de enfermagem. No entanto, o magistrado negou nosso pedido por entender que o conselho de enfermagem não pode exigir a contratação de profissionais”, explica. O processo contra o hospital particular está em andamento e aguarda análise de recurso impetrado pelo Coren-DF.

“Como um conselho de fiscalização, que tem a atribuição de fiscalizar e disciplinar uma profissão, não tem competência para estabelecer um cálculo de pessoal com embasamento científico? Como vamos exigir assistência de qualidade ao paciente a um profissional que precisa atender mais de 20 pessoas em um pronto-socorro, se o juiz considera que o conselho não pode exigir a contratação de mais profissionais?”, revolta-se o presidente do Coren-DF, Gilney Guerra.

O processo administrativo referente ao Hospital de Base está sob análise do departamento jurídico da autarquia para ser encaminhado ao Ministério Público do DF, na tentativa de articular um termo de ajustamento de conduta (TAC) para o HBDF. “O Coren-DF vai esgotar todas as ações cabíveis para tentar prover o mínimo de melhoria ao profissional de enfermagem da rede pública”, afirma Guerra. Uma das opções estudadas pelo conselho é a interdição ética, cuja resolução já foi aprovada pelo Conselho Federal de Enfermagem e deve ser publicada em breve.